Histórias de um cotidiano rico de
experiências humanas. São estas histórias, escritas por professores da
rede estadual, que estão aqui reunidas, tiradas da publicação "O
professor escreve sua história" (Abrevlivros/FDE/Unicef-1997).
Um total de 2.637 professores, em escolas de mais da metade dos 600
municípios paulistas, participou do concurso que selecionou 50 histórias
em 1997. Ora engraçadas, ora tristes, reflexivas, ou cheias de
perplexidade, elas contam pedaços da história da educação no Estado de
São Paulo, no fim do século XX.
Emocione-se nesta viagem.
Letra A
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A chamada -
Prof ª. Edna Mara Araujo Gonçalves
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"O professor duvidou de si mesmo. Pensou em consultar o
horário, mas lembrou-se de que não costumava trazê-lo consigo. Decidiu
estranhar aquela balbúrdia (..) e bradou em tom de alto-falante de
estádio: - Até hoje vocês não sabem do horário?"
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"Oh, discípulos de
Sócrates. Mostrem que de dentro desta força criativa brota a razão que
pode transformar o mundo, pois o mundo é belo e puro. Imundo é a
negação do mundo e dos homens da terra!"
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"Aquele frio aço
envelhecido que guardava objetos conhecidos: algumas gramáticas
marcadas pelo uso, giz, apagador, os diários do ano...
Involuntariamente lembrou-se do poema de Drummond. Quisera ter aquele
aço na alma para não sofrer como vinha sofrendo nos últimos dias."
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"O meu céu seria azul real
lavável. Dois adjetivos para o céu. E, na certa, a professora iria
gostar. Ela gostava sempre que escrevêssemos com aquela cor. Dizia que
o azul daquela tinta era o nosso céu."
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Letra B
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"As mãos que trabalham no
corte da cana-de-açúcar e na colheita da laranja durante o dia podem, à
noite, despertar a consciência, monstros bispos em lantejoulas
coloridas ou embarcações em palitos de fósforo."
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Letra C
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"Ao terminar de ler, me
arrependi pela indiferença a essa linda declaração de carinho. Muitas
vezes, o corre-corre do cotidiano nos impede de sermos mais humanos, de
valorizar gestos que nos fazem perceber que amamos e somos amados.
Gestos que dão mais cor a nossas vidas."
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"...é porque saber ou não
saber uma simples operação matemática não alterava em nada suas vidas.
O que dizer de Camões, então? O que significaria para eles a tragédia
do gigante castigado por Zeus apenas porque se apaixonara por
Tétis?"
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Letra D
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"Mas, a inspetora de
alunos entrou... Seu grito desaprovador ecoou estridente ao notar
cascas e sementes atiradas ao chão. A criança assustou-se; porém,
estava muito feliz e, indiferente, pôs-se a cantarolar. De repente, um
estalar de mão em seu pequenino rosto a fez chorar sentida."
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Deusimar -
Prof ª. Claudete Campos Moreira Lunardi
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"Foi num dia desses que
apareceu a Deusimar, assim, do nada. Bonita era porque era criança e
não existe filhote feio. Digamos assim: Ninguém nunca se lembraria dela
para um comercial da Parmalat..."
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"Número 2. Carlos! -
Presente.(Como será esse?) Número 3. Daniel! - Presente.(Aluno novo,
olhos espertos, deve ser bom.) Número 5. Domício! Domício? -...(Não
veio. Já faltando?)...""
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"Foi assim que reconheci
esses olhos azuis. Seu pai, um pedreiro, fizera parte dessa classe de
Mobral. A minha primeira turma. Quantas lembranças me vêm à mente. Que
saudade, seu Antônio, daquele tempo. Quem diria, eu conheceria seu
filho. E que peça nos prega o destino."
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Letra E
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Encontro -
Prof ª. Lúcia Regina Ibanes Insaurralde
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"Rios rutilantes são rotas
... (?) Não! Não! Não! O exercício era de poesia. Poesia compulsória
aplicando figuras de linguagem: 'Aplique, num verso, aliteração e
metáfora.' Exercício para entregar! Para ponto."
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"O sor diz que eu faço
parte da humanidade, e que a humanidade faiz parte de eu, diz tomém que
a humanidade é boa mais tomém é ruim, e que ela é quem faiz o
conhecimento..."
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Letra F
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"A menina chora ainda
mais: seus pais estavam se separando e a mãe não queria deixá-la ver o
pai. E agora, professora? O que dizer? Você pensa que lecionar é só
ensinar gramática e interpretação de textos?"
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"Até que, por uma dessas
coincidências providenciais, dois jovens idealistas se uniram com toda
a força de trabalho: o novo prefeito e o recém-empossado diretor.
Começaram por formar um Conselho Comunitário."
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Letra G
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"Trim-trim-triiimmm!!! É
dia de "capacitação" na escola. Mas aqueles meninos não
aprendem. E a entrevista de ontem? Onde será que aquele doutor estudou?
- Precisamos aproveitar o tempo. Vamos primeiro fazer a leitura destes
documentos e depois responder a este questionário. Reflitam!"
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Letra L
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"Ao todo eram sete: três
rapazes jovens, duas mulheres já maduras e dois senhores de meia-idade.
Como voluntária no programa de alfabetização, fui designada para
lecionar na zona rural e tive assim um grande começo naquele universo
de verdades muito concretas..."
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"Santinha, professora
leiga que dava aulas havia muito tempo, (..) achegou-se e disse com
toda a sua simplicidade que dar aulas não era aquele "perrengue
todo não": bastava descer até o nível do aluno e ir, junto com
ele, subindo devagarinho."
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"No quadro-negro,
aguardava-nos sereno "O cavalinho branco", de Cecília
Meireles. Pequenos respingos descoraram a forma de algumas palavras,
mas não lhes feriram o encanto e a infinitude. Inseridas em versos
delicados, elas acalmavam nossas almas e nos convidavam a aprender e
ensinar."
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Letra N
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"Tudo para aqueles típicos
espetáculos de Normanda. Sempre que convidada a responder ao que lhe
era mostrado à lousa, criava coragem no instante de sua maior dúvida -
tudo talvez girasse na incógnita de seu ser."
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"A professora me olhou,
sorriu e disse que aquela era a maneira correta e que eu deveria
ensinar ao pessoal de casa, assim eu praticava a norma culta.
"Norma culta", pensei... Bom, deixo assim; ouço essa tal de
norma aqui, e falo o meu português lá fora."
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Letra O
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"Eu ainda não tinha em
mãos o meu diploma de professora quando entrei naquela sala de aula, e
deparei com um grande desafio: não apenas ensinar, mas enfrentar um
grupo de alunos numa escola de periferia, com olhos assustados,
querendo assustar."
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O índio -
Prof. Edson Rodrigues dos Passos
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"Era um índio mesmo. O
desespero tomou a alma da pobre mulher; andava de um lado para o outro,
olhava a ficha do novo aluno silvícola, ia até os professores, chamava
dois ou três, contava-lhes, voltava à sala, (..) até que teve uma
idéia: pesquisaria na biblioteca."
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"Converso com os colegas
sobre como agir, como trazer João de volta. Ninguém parece saber a
resposta. Peço trabalhos sobre o tema das drogas. Converso com João
sempre que o vejo. De repente, entro em minha sala de aula, meu olhar
corre apressado, mas não o encontra. Onde está João?"
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Letra P
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Paixão -
Prof. César Sátiro dos Santos
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"Só agora, passados tantos
anos, posso avaliar a intensidade da paixão que vivi. Era um professor
experiente e, muito embora pressentisse a possibilidade do fato, não
pude prever nem dar-me conta de que acabara de começar."
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"Educador não pode surgir
meio nu, meio vestido em colégio. "Atenção, sou o professor
João..." O grupo estaca. "Rá! Esse não é do pedaço", retruca
a mesmíssima mocinha morena e líder. "Pega ele!" Desesperado,
o homem desfere murradas. Eles são pequenos, ele abre brecha.
Tropel."
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Passível -
Prof ª. Luciana Velo do Amaral
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"A questão emergiu quase
em súplica. "Mas, e eu?" Não houve resposta, sequer um olhar.
Estava acostumada a perder. Uma menina de seis anos acostumada à perda.
Procurou, nada. Só. Seguiria resignada rumo à escola."
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Percepção -
Prof ª. Solange A. Cavalcante dos Santos
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"Era de fazer Roman
Polansky se emocionar, e tudo o que queriam era que eu os dirigisse e
lhes explicasse o que era o busto de Minerva do poema. Fiquei
envergonhada com minha insensibilidade. Deus, eu era um monstro."
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"Refleti sobre o PODER DE
TRANSFORMAÇÃO que o professor possui. Não metal em ouro, como queriam
os alquimistas, mas no poder de transformar um ser vazio em um homem
pleno de conhecimentos, capaz de entender, criticar e mudar a sua
realidade."
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"Vou fazer uma poesia pra
lá de moderna, onde haja escola rimando com cidadania, professor
rimando com respeito, aluno rimando com feliz."
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"Olhos inchados,
vermelhos, se despedem de nossa guerreira professora. Enquanto se
despedem, penso: 'Será que o coração da amiga não enfartou diante de
tantas decepções?'."
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"...o sinal vai levar-me
desta para a outra realidade: a minha vida, meus temores, meus anseios.
(..) Nem sei definir se é bom ou não hoje ser dia de provas, em todas
as salas. Dia de pouco falar, pouco explicar, dia de ter tempo para
encontrar-me comigo mesma. Prova também para mim..."
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Letra Q
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"A mulher, simplória,
disse ipsis litteris: "Fessora, faiz o Tião vê as coisa do
mundo". Fácil, se não fosse o caipirinha cego por nascença. Sem
recursos pedagógicos, desfiz-me em instintos e invulnerabilidade para
vencer tal provocação."
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"Depois que o tempo passa,
as coisas que pareciam tão tristes, quase trágicas se transformam e é
muito divertido recordar-se do aluno que criava uma rã e eram
inseparáveis. O nome da arruaceira e catastrófica gia do nosso rapaz
era Cleópatra, você ainda se lembrava desse detalhe?
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Letra R
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"Quem se lembra do
professor Santoro? Eu tenho vergonha de me lembrar tão pouco do
Santoro.(..) Não posso fazer nada e só posso sentir vergonha. Um grande
pesar e um nó na garganta, um sentimento de incapacidade de ação que
estrangula."
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"A cada erro, o escárnio.
O prazer que eu via nos olhos dela assustava-me. Mudou-me para a
fileira B. Até hoje ouço o som das risadas das crianças enquanto
recolhia meus pertences. Ela incentivava nos alunos o desprezo pelos
que erravam."
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Letra S
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"Vi-me a acenar lá do
alto, gestos largos, solenes de doer. Gritava obrigado, obrigado.
Pelotão desalinhado, balizas num sem jeito só, um cheiro de improviso
em tudo, mas era a homenagem que podiam prestar ao professor."
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"- Sô Chaim, o senhor veio
hoje?... Caramba, outra vez! Todo dia a mesma pergunta (..). É a
loirinha Zilda, liderando mais uns dez da quinta A, ali no ponto
conferindo se a jardineira traz o sô Chaim, quem sabe uma folga no
horário, sair mais cedo, ou só por nada."
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"- Ah! professor, por que
você veio?
Do portão da escola até a sala de aula, quando finalmente se conformam
com nossa presença, esta é a frase com a qual eles nos recebem."
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Sem título -
Prof ª. Leila Marisa de Souza Lima Silva
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"Há momentos que valem uma
eternidade e eu estava vivendo o meu instante mágico de paixão, de
amor, de desejos, de silêncio. Para quem contar? Quem iria entender?
Uma professora e seu aluno apaixonado?"
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"Choque, espanto,
indignação. Isso foi há quase vinte anos. A menininha da quinta série,
que então me perguntava sobre minha atividade profissional, já deve ser
mãe de família, e espero que seja tudo, menos professora."
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"Tinha quatorze anos e um
sonho: ser uma professora de ginásio. Nos anos 60 o professor ainda era
uma figura respeitada e tinha orgulho de sua profissão. Portanto, para
a menina, ser professora era um sonho mas ela não via a mais remota
chance de realizá-lo..."
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"Era excelente na área de
Humanas e regular em Exatas. Tinha uma grande paixão: os livros.
Amava-os. Devorava-os. Gostava muito de escrever. Quando tinha aula de
redação, eu me realizava. Sonhava um dia tornar-me escritora e achava
que na escola estaria o começo."
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"Ele não perdia uma aula.
Dia após dia encontrava uma maneira nova de me provocar, gritando,
assobiando, caindo da cadeira, tendo acessos de riso. Meus livros eram
constantemente escondidos pelo Bertoldo. Apareciam sempre dias depois
nos lugares mais estranhos."
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Letra U
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"Fazia mais ou menos uns
quatro meses que eu estava em Maputo, capital de Moçambique. Por algum
tempo, andei vazia e estrangeira pela minha terra. Para encontrar algum
sentido, mudei de país."
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"Começou a aula. Marilda
notou que o Tonho não tinha vindo. No dia anterior também não viera.
Isso a deixava triste. Sempre que começava a roçada, alguns alunos
deixavam de freqüentar a escola, tinham que ajudar os pais."
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"Texto difícil, dizem
alguns; complicado, retrucam outros. Um texto diferente que, de quebra,
nos quebra. Dou um tempo para a leitura. A classe, confusa, parece não
entender o texto. É difícil ler Guimarães Rosa, diriam vocês. Eu lhes
diria difícil, poético, profundo."
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"Era isso!... Palavras.
Quando comunicou sua decisão de ir para a escola pela primeira vez, aos
12 anos, o pai enfezou, os irmãos riram e a mãe chorou por todas
aquelas reações."
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"Já no primeiro bimestre
eu notara a presença inquietante daquele aluno. Para tudo que era
solicitado, ele virava de um lado para o outro, balbuciava guturalmente
qualquer coisa, dava tapinhas na carteira e dizia pra si mesmo: 'nada a
ver'."
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tra V
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"O cavaleiro, então. Nem
cavaleiro, nem boiadeiro de profissão; nem peão. Levava preso às
argolas misturança: comida, café, cadernos, livros, giz. No
bate-que-bate ritmado da alimária assentava seu mundo de
esperanças."
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